O que você faz de bruços?

Nesta quarta-feira, dia 04 de fevereiro, realizamos a performance ANESTESIA, na travessa da Praça da Liberdade, dentro da programação INFLAMÁVEL. Como na semana anterior, recebi o apoio incondicional de um grupo numeroso de artistas e colaboradores para compor o trabalho comigo a quem agradeço mais uma vez por compartilhar a experiência. Salve Ana Antunes, Carolina de Pinho, Dorothé Depeauw, Ed Marte, Efe Godoy, Filipe Arêdes, Flora Maurício, Gilmara Oliveira, Guilherme Morais, Jéssica Santos, Margô Assis, Nilton Chaves Fernandes, Olivia Viana, Peter Lavratti, Priscila Rezende e Thomas Trichet!


A ação teve início ainda na Galeria do BDMG Cultural, quando nos reunimos e após a conversa sobre o roteiro de ações e a retirada dos sapatos, seguimos descalços para a Praça da Liberdade. Andar descalço pela rua gera uma outra sensação no corpo, outro tipo de passo. Chegando ao local da performance, havia um músico tocando uma gaita-de-fole, que integra um grupo raro de instrumentos que tocam contínua e mecanicamente, sem necessidade de pausa para o músico respirar. A gaita produz um som bastante incomum por aqui e foi um verdadeiro presente para nós, gerando uma sensação ritual bem interessante para o início da performance.

Sem pausa também começamos a compor a imagem da performance, corpos deitados de bruços, na travessa da Praça da Liberdade, em uma postura de submissão, como acontece em rituais religiosos, em que o corpo é consagrado (em cerimônias de ordenação de padres, por exemplo, ou no candomblé). A proposta da ação é permanecer nessa postura, com a cara para o chão até o limite de cada performer, dilatando a duração da performance e consagrando o corpo ao tempo.

Para os performers, essa é uma atitude de muita vulnerabilidade e a sensação que tive e que outros artistas compartilharam comigo após a performance é de uma entrega total. O campo de visão fica muito reduzido, porque o rosto está contra o chão e há pouca extensão na visão lateral. Há uma percepção de quando uma pessoa passa perto, caminha. E há uma ampliação do sentido da audição, do olfato e do tato, sobretudo das partes do corpo que estão expostas, como as mãos e os pés. Mas, de maneira geral, ficamos muito entregues.

A ação trouxe também uma reflexão interessante sobre a relação entre o trabalho coletivo e o trabalho individual. Há um forte senso de grupo quando nos reunimos, quando caminhamos até a praça, quando nos encontramos novamente após a realização da ação. No entanto, foi curioso perceber e ouvir dos demais artistas como, durante a ação, devido à postura e concentração, há um empenho extremamente individual de cada performer. Não há como saber exatamente o que os outros estão fazendo naquele momento, se já se levantaram ou se permanecem. Há uma confiança, um tipo de ligação energética que cria outros tipos de vínculos: algumas pessoas comentaram depois, por exemplo, que grupos de performers se levantaram no mesmo instante, gerando uma reverberação.

Durante a performance, uma casca de uma das palmeiras que cercam a travessa da Praça da Liberdade caiu. Uma sensação generalizada entre o grupo de performers foi o incômodo provocado pelas formigas e pelo formigamento de algumas partes do corpo durante a ação. Uma percepção do cheiro do chão, do microcosmo daquela pedra, somada à superação do efeito da gravidade sobre os ossos do crânio contra o solo compõem um tipo de força exigida dos performers, que pode ser traduzida tanto como uma concentração, mas também como uma força de vontade, um intuito, uma determinação na demanda que a ação lhe coloca, no sentido da submissão aos estados do corpo que se processaram durante a postura e os diálogos internos que eles provocam.

Outro aspecto muito curioso foram as diversas reações e comentários do público durante a performance, que puderam ser ouvidos pelos artistas envolvidos na ação, mas também por quem estava acompanhando e que compartilhou conosco depois. Eu ouvi as perguntas incessantes de uma criança para a mãe sobre a motivação da ação: “Eles estão mortos?”, perguntava. A mãe respondeu: “Para mim, eles ficaram cansados e simplesmente, se deitaram para dormir um pouco”. Não satisfeito com o resumo proposto pela mãe, o menino dirigiu-se à artista Fernanda Branco Polse, que fotografou a performance: “Eles estão mortos? Eles estão dormindo?”, perguntou, ansioso. E ela respondeu: “Eles também estão mortos...” 

A gama de sensações das pessoas que testemunharam a ação – e as performances e a arte de maneira geral – pode ser bem variada, desde perplexidade, indiferença, curiosidade, estranhamento, admiração... Nesta quarta-feira na Praça da Liberdade, esse panorama de emoções veio à tona durante ANESTESIA. Aconteceu de um jovem que passava pela praça no momento da performance se juntar à ação e se deitar ao lado de Jéssica Santos ou de um senhor se preocupar, sinceramente, com o estado de Thomas Trichet, perguntando se ele estava passando mal, pois foi o último a permanecer na postura.. Mas houve pessoas também que demonstraram outros sentimentos menos cuidadosos, comentando em alto e bom som, por exemplo, “que queria ver se soltassem um cachorro bravo, se todos iam continuar deitados...”

A experiência compartilhada entre os artistas, com o espaço e as pessoas presentes na Praça da Liberdade foi muito intensa. A iniciativa de convidar artistas parceiros e abrir a possibilidade para que interessados integrassem as ações coletivas de INFLAMÁVEL foi muito rica para a exposição e para mim. Após a ação, conversando com Carolina de Pinho, refleti sobre a possibilidade de ANESTESIA funcionar também com um procedimento: um tipo de exercício de construção de estados corporais de concentração, desapego, desaceleração e meditação que a ação convoca. Esse procedimento pode ser interessante como aquecimento para a dança, por exemplo, para a composição, para o improviso, para a vida, por que não? 

Fiquei, estou, continuo comovida com a entrega de todos, com a disponibilidade dos que se comprometeram com a ação, convidados por outras pessoas ou por eles mesmos, a partir da chamada na programação. Entendo essas atitudes como uma valorização do encontro e como uma possibilidade de exercitar uma “pedagogia da performance”, no sentido de pesquisar e experimentar o que é “ir até o limite do corpo”: o que isso significa, afinal, na performance? Perceber ou superar os limites? Contaminar ou concentrar fronteiras? Memória do que era ou possibilidade de abertura? 


























FOTOGRAFIA por Fernanda Branco Polse